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Dona Abadia Do Congo Sainha: Uma Mulher Congadeira Bem À Frente De Seu Tempo.

Publicado em 06/03/2021 - 09:24 Por Jeremias Brasileiro
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Créditos da imagem: Congo Sainha, 1949. Fonte: Sandra Salles. Acervo Digital: Jeremias Brasileiro

Conheci Dona Abadia do Congo Sainha, já octogenária, lá na década de 1990. Ela aparentava ser franzina visualmente, estatura baixa, voz pausada, suavidade no olhar. Dona Abadia era a guardiã do grupo de Congado Congo Sainha desde a morte de seu esposo e capitão, José Rafael. A cada encontro que conseguia ter com ela em sua humilde residência, eu ficava encantado com a sua sensibilidade e firmeza.

Foram várias visitas, vários meses de conversações, quando o inusitado aconteceu. Dona Abadia retira um baú pequeno que se encontrava debaixo de sua cama, abre-o, seleciona fotografias do Congo Sainha desde a década de 1940, oferece-as a mim, como tesouro, como relíquia de família, e ela dizia, que sob minha proteção, aquele acervo valioso, teria futuramente um lugar na História.


Marejados meus olhos ficaram. Eu não passava de um pesquisador autodidata, mas com muita honra assumia essa condição, mais ainda por saber que Dona Abadia colocava sob minha responsabilidade uma História por acreditar que um dia o seu desejo viesse a se concretizar, desejo de que sua luta e de tantas mulheres negras e principalmente congadeiras, fossem reconhecidas em uma cidade que não as via.


Dona Abadia não reclamava, somente relatava com sua voz de mansidão e semblante sincero, que as mulheres brancas ao lutarem por seus direitos de igualdade, não incluíam as mulheres negras, a não ser como cozinheiras, costureiras, lavadeiras, babás, enfim, empregadas do lar das “madames chiques da cidade”. E Dona Abadia já era veterana de guerra, exigia sua presença em meio ao mundo masculino dos homens congadeiros do Congo Sainha.


Mulher negra de pequena estatura, era enorme nas suas atitudes, principalmente pelo seu jeito cativante de ser, e assim, conduzia, coordenava, dominava, sem usar os chicotes das palavras. Reivindicou desde o começo o seu lugar na Congada, não na cozinha do Congado, na costura das indumentárias, na reza do terço somente, mas publicamente sim, inclusive nas fotografias, entre os homens congadeiros, ao lado de seu companheiro e capitão, José Rafael.


Enquanto pesquisador autodidata, aprendi com Dona Abadia, conceitos de vida, de resistências, que não estavam na Universidade, mas na visão de ver o mundo sob outros princípios, como de um dia ao simplesmente me disser: - “Cada Congada é de um jeito né? Nossa! Cada Congada é de um jeito, sempre a Congada é de um jeito, nunca a Congada é igual”. (Dona Abadia, 2003).


Quando entrei na Universidade, no curso de graduação, ouvi um professor dizer que historiador não deveria usar expressões como “nunca” e “sempre”. Hoje, século XXI, sexagenário já que sou, afirmo que a História nunca termina, a História sempre começa. Quem me ensinou foi Dona Abadia, uma mulher negra, congadeira, que estava sempre à frente de seu tempo, como é possível verificar na fotografia que ilustra essa crônica. Creio ter cumprido ao menos em parte, a destinação que Dona Abadia conferiu a mim.

Tags: Março, mulher, congada, Uberlândia
 Jeremias Brasileiro Jeremias Brasileiro
Crônicas e Ensaios das Gerais

Doutor em História Social pela Universidade federal de Uberlândia. É Comandante Geral da Festa da Congada da cidade de Uberlândia, no Triângulo Mineiro, desde o ano de 2005 e presidente da Irmandade do Reinado do Rosário de Rio Paranaíba, Alto Paranaíba, Minas Gerais, desde o ano de 2011. Desenvolve pesquisas sobre cultura afro-brasileira e sua diversidade nas Congadas de Minas Gerais, associando-as com o contexto educacional, em uma perspectiva epistemológica congadeira, de ancestralidade africana. Um intelectual afro-brasileiro reconhecido na obra de Eduardo de Oliveira: Quem é quem na negritude Brasileira (Ministério da Justiça, 1998), que lista biografias de 500 personalidades negras no Brasil; e na obra de Nei Lopes: Dicionário Literário afro-brasileiro (Rio de Janeiro: Editora Pallas, 2011). Detentor de um dos maiores acervos digitais sobre as Congadas de Minas Gerais, constituído desde a década de 1980, historiador com vasta experiência e produção cientifica sobre ritualidades, simbologias, coexistências culturais e religiosas em oposição ao conceito de sincretismo. Escritor, poeta, possui textos de dramaturgia, crônicas, literatura afro-brasileira.

Leia também: Sincretismo não! Coexistência cultural e religiosa, sim. Parte 1