Dona Abadia Do Congo Sainha: Uma Mulher Congadeira Bem À Frente De Seu Tempo.
Publicado em 06/03/2021 - 09:24 Por Jeremias BrasileiroConheci Dona Abadia do Congo Sainha, já octogenária, lá na década de 1990. Ela aparentava ser franzina visualmente, estatura baixa, voz pausada, suavidade no olhar. Dona Abadia era a guardiã do grupo de Congado Congo Sainha desde a morte de seu esposo e capitão, José Rafael. A cada encontro que conseguia ter com ela em sua humilde residência, eu ficava encantado com a sua sensibilidade e firmeza.
Foram várias visitas, vários meses de conversações, quando o inusitado aconteceu. Dona Abadia retira um baú pequeno que se encontrava debaixo de sua cama, abre-o, seleciona fotografias do Congo Sainha desde a década de 1940, oferece-as a mim, como tesouro, como relíquia de família, e ela dizia, que sob minha proteção, aquele acervo valioso, teria futuramente um lugar na História.
Marejados meus olhos ficaram. Eu não passava de um pesquisador autodidata, mas com muita honra assumia essa condição, mais ainda por saber que Dona Abadia colocava sob minha responsabilidade uma História por acreditar que um dia o seu desejo viesse a se concretizar, desejo de que sua luta e de tantas mulheres negras e principalmente congadeiras, fossem reconhecidas em uma cidade que não as via.
Dona Abadia não reclamava, somente relatava com sua voz de mansidão e semblante sincero, que as mulheres brancas ao lutarem por seus direitos de igualdade, não incluíam as mulheres negras, a não ser como cozinheiras, costureiras, lavadeiras, babás, enfim, empregadas do lar das “madames chiques da cidade”. E Dona Abadia já era veterana de guerra, exigia sua presença em meio ao mundo masculino dos homens congadeiros do Congo Sainha.
Mulher negra de pequena estatura, era enorme nas suas atitudes, principalmente pelo seu jeito cativante de ser, e assim, conduzia, coordenava, dominava, sem usar os chicotes das palavras. Reivindicou desde o começo o seu lugar na Congada, não na cozinha do Congado, na costura das indumentárias, na reza do terço somente, mas publicamente sim, inclusive nas fotografias, entre os homens congadeiros, ao lado de seu companheiro e capitão, José Rafael.
Enquanto pesquisador autodidata, aprendi com Dona Abadia, conceitos de vida, de resistências, que não estavam na Universidade, mas na visão de ver o mundo sob outros princípios, como de um dia ao simplesmente me disser: - “Cada Congada é de um jeito né? Nossa! Cada Congada é de um jeito, sempre a Congada é de um jeito, nunca a Congada é igual”. (Dona Abadia, 2003).
Quando entrei na Universidade, no curso de graduação, ouvi um professor dizer que historiador não deveria usar expressões como “nunca” e “sempre”. Hoje, século XXI, sexagenário já que sou, afirmo que a História nunca termina, a História sempre começa. Quem me ensinou foi Dona Abadia, uma mulher negra, congadeira, que estava sempre à frente de seu tempo, como é possível verificar na fotografia que ilustra essa crônica. Creio ter cumprido ao menos em parte, a destinação que Dona Abadia conferiu a mim.