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Emiliana De Jesus: Crônica De Uma Vida Quase Secular

Publicado em 14/11/2020 - 14:16 Por Jeremias Brasileiro
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Créditos da imagem: Emiliana de Jesus conectada ao mundo. Aniversário do ano de 2018. Acervo Digita: Jeremias Brasileiro

Falar de histórias de pessoas do passado e do presente é um dos pressupostos da Coluna CRÔNICAS E ENSAIOS DAS GERAIS. Mostrar que existe, às escondidas por essas várias MINAS, gente que fez, faz e fará a roda do mundo girar por meio de suas lutas, suas vivências impregnadas de fé e igualmente com projetos de vidas para seus filhos, netos, bisnetos, e que essas pessoas em seus cotidianos invisíveis atuam para a construção de um mundo melhor, a dizer que do outro lado da margem também existem outras histórias.


Dona Emiliana de Jesus. A Emiliana de Jesus é uma senhora carismática quase a completar um século de vida: cheia de vivacidade e lucidez. Mãe, avó, bisavó, tataravó, atravessou toda essa temporalidade sem jamais desistir de sua fé. Ela lembra, porém, de onde vem e conta sem reclamar, como é praxe em toda a sua vida. Foi preceptora, uma forma professoral de ensinamento particular, alfabetizadora e com um letramento invejável, nos anos de 1950, escrevia cartas para as pessoas, inclusive de namoros que resultaram em casamentos.

Carta escrita por Emiliana de Jesus em 1949 ou 1950. Acervo Digital de Jeremias Brasileiro.


Toda uma trajetória de vida permeada por uma luminosidade de esperança permitiu à Emiliana de Jesus atravessar as eras sem esquecer, portanto, suas origens. O seu tempo de antes na infância a morar na roça, o tempo em que ainda existia cerrado e frutos do campo, todavia hoje as plantações agroindustriais sepultaram essa natureza, os campos floridos de margaridas, a imensidão das borboletas multicores que faziam arco-íris ao por do sol; a indústria do cloro, dos hormônios, inseticidas é que predominam. Emiliana de Jesus não reclama, simplesmente conta:


Foi um tempo muito difícil, custoso demais! Meu avô trabalhava na roça e minha avó mexia com um quintal do tamanho de uma chácara. Ali, naquele quintal, minha avó plantava de tudo! Goiaba, fruto do campo, mangava, gabiroba, jambo, tudo encontrava lá! E ali minha mãe fazia polvilho de araruta, três qualidades de araruta! Ainda mocinha, ela pelejava, arrumava e dava conta daquilo. Araruta era um tipo de planta que era usada para fazer polvilho, o melhor polvilho era o de araruta, até hoje! Um polvilho que brilha! Uma beleza! 


Minha mãe deixava a farinha secar e aproveitava para fazer bolinhos de araruta, colocava na frigideira e todo mundo comia, fazia ainda mingau e todo mundo procurava o polvilho! Só que tinha uma qualidade de araruta – erva que possui caule subterrâneo – difícil de fazer farinha, tinha de lavar quatro, cinco vezes para ela poder clarear.


Depois bem mais tarde a gente mudou de rumo, veio pra Uberlândia, tudo que ficou lá sumiu devagar, mas de repente, as árvores, os passarinhos que carregavam sementes, as fontes, o lugar que gente buscava e lenha e palhas para fazer vassouras, acho que tudo acabou, a gente ainda se lembra de alguma coisinha.


Ter lembranças do passado e valorizar essas histórias fortalece a fé e a destinação das pessoas inseridas nas diásporas internas de uma vivência nada fácil, permeada de desafios. Emiliana de Jesus acompanhou as mudanças do mundo desde a sua juventude: a segunda guerra mundial, o advento do telefone, a chegada da TV em preto e branco em raras residências na sua terra natal, Rio Paranaíba. 


Ela mudou para Uberlândia na década de 1970, vivenciou o crescimento da cidade, do bairro, constituiu em volta de si um aconchego para muita gente, vizinhos, devotos de sua igreja, amigos. Entretanto os tempos passam e as memórias ficam, enfrentar as adversidades cotidianas tendo como salvaguarda a fé em futuros melhores. Lembrar esse passado de transformações sociais não foi motivação de esquecimento do mundo em que viveu e se fez um contínuo viver de resistência:


A casinha onde mãe morava era de capim, de pau a pique, ela barreava quando chovia, ela aproveitava a água, fazia o barro e cobria os buracos, aterrava a casa, que naquele tempo não tinha piso, nada disso! Aí ela amassava barro, aterrava o chão da casa.


Meu avô ficava na roça, minha avó cuidando de mãe e irmãos, fazendo mãe ir à escola, mas às vezes minha mãe não ía, pois ela ía para roça ajudar meu pai. Carne era muito difícil, tinha, mas era muito difícil. Havia um pilão, um pilão baixinho, minha avó virava o pilão, colocava uma toalha em cima e ali estava então a pequena mesa de jejum de minha mãe. Quando acabava de jejuar, avó rezava e oferecia o que tinha na mesinha para os filhos comer. 


Atualmente Emiliana de Jesus está com 98 anos de idade (17 de novembro 2020). Está o tempo todo em movimento, quer seja vendo TV, cuidando das plantas no quintal, lendo ou fazendo bordados, uma vez que em tempos de Pandemia as suas visitas semanais à paróquia Santa Mônica não aconteceram. Trata-se naturalmente de contextos e tempos diferentes, no entanto importantes para o entendimento sobre as formações familiares decorrentes desse processo histórico.


O conceito de fé precisa ser problematizado porque abrange uma gama de situações, é uma engrenagem mental permeada de complexidade e portadora daquilo que é capaz de individualizar o ser humano. Quanto mais presente e atuante, quanto mais supre as necessidades do indivíduo, mais a fé se atualiza, se renova e permanece.  

Em uma modernidade na qual as dinâmicas sociais se modificam e as compreensões sobre o “ser família” modificam-se de acordo com as gerações, ter como ícone Emiliana de Jesus, próxima de uma secularidade existencial, crônica de uma vida dedicada para o bem estar das pessoas, uma “vó” de tantos que ultrapassa o contexto consanguíneo ou geracional e o cuidado que se tem dela Emiliana de Jesus: demonstra o quanto pode ser saudável manter essas guardiãs de histórias em seus lares, junto aos seus filhos, filhas, netos, bisnetos. 

Entre as diversas virtudes de Emiliana de Jesus, há de se destacar também a sua capacidade de compreender os tempos geracionais e as opções individuais dos filhos e filhas. Emiliana de Jesus nunca impôs, por exemplo, os seus dogmas cristãos católicos a nenhum deles/delas, respeitando o jeito de ser e viver de quatro mulheres e quatro homens.


Por tudo isso, chegar aos 98 anos em pleno estágio de saúde é digno de celebração. Aos leitores, vocês perceberam que referi “demonstra o quanto pode ser saudável manter essas guardiãs de histórias em seus lares, junto aos seus filhos, filhas, netos, bisnetos.” A Emiliana Terezinha de Jesus, nessa crônica de vida conhecida como Emiliana de Jesus, é também a minha mãe.

Emiliana de Jesus em Brasília. Acervo Digital Jeremias Brasileiro, 2016.

Emiliana de Jesus assinando livro de presença, sem óculos, na Câmara Municipal de Uberlândia, em reconhecimento a sua trajetória de lutas e enquanto guardiã de memórias. Acervo digital de Jeremias Brasileiro.

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Crônicas e Ensaios das Gerais

Doutor em História Social pela Universidade federal de Uberlândia. É Comandante Geral da Festa da Congada da cidade de Uberlândia, no Triângulo Mineiro, desde o ano de 2005 e presidente da Irmandade do Reinado do Rosário de Rio Paranaíba, Alto Paranaíba, Minas Gerais, desde o ano de 2011. Desenvolve pesquisas sobre cultura afro-brasileira e sua diversidade nas Congadas de Minas Gerais, associando-as com o contexto educacional, em uma perspectiva epistemológica congadeira, de ancestralidade africana. Um intelectual afro-brasileiro reconhecido na obra de Eduardo de Oliveira: Quem é quem na negritude Brasileira (Ministério da Justiça, 1998), que lista biografias de 500 personalidades negras no Brasil; e na obra de Nei Lopes: Dicionário Literário afro-brasileiro (Rio de Janeiro: Editora Pallas, 2011). Detentor de um dos maiores acervos digitais sobre as Congadas de Minas Gerais, constituído desde a década de 1980, historiador com vasta experiência e produção cientifica sobre ritualidades, simbologias, coexistências culturais e religiosas em oposição ao conceito de sincretismo. Escritor, poeta, possui textos de dramaturgia, crônicas, literatura afro-brasileira.

Leia também: Sincretismo não! Coexistência cultural e religiosa, sim. Parte 1