Faça login na sua conta!

Ainda não tem uma conta? Cadastre-se agora mesmo!

Mega Colunistas

Colunistas

Fic’ativo Sô!

Publicado em 16/01/2021 - 08:00 Por Jeremias Brasileiro
destaque
Créditos da imagem: Hamilton V. Rio Paranaíba-MG.

Possante já estava com os nervos à flor da pele de tanto ouvir dos outros a irritante expressão: “Ô meu preto, meu nego, chega mais meu neguinho”. Um dia cismou de que aquilo estava errado e ainda que as adversidades fossem várias, era melhor enfrentá-las, era melhor se manter em pé do que se sujeitar às cordialidades que transformavam o ser humano numa pessoa com um "falso estar bem", sobretudo submissa. Era melhor sofrer, lutar, do que fingir ser feliz cabisbaixo e de joelhos. Quando Sinhá Aurora gritou:


Possante! Vem cá! Possante, dessa vez, respondeu sem gaguejar: – Fica ativo, sô! Fica ativo, sô!


Sinhá Aurora não acreditou. Acostumada a tratá-lo com carinho, ela não compreendia o motivo de agora, só agora, Possante tão sexagenário, resolvera lhe responder com tanta malcriação. Pela primeira vez, Possante encarava Sinhá Aurora e de cabeça erguida percebia que já não havia mais o tronco dos martírios.


Com seu olhar ainda abismado, descobria que não existia Capitão do Mato, pois que, durante toda a sua vida útil, Possante jamais ousara erguer o olhar e admirar o pôr do sol. Ele sempre fora o “neguinho da sinhá”, o “pretinho do sinhô”.


Por sempre ter produzido rapadura no engenho, vivera distanciado dos demais companheiros e como durante toda a escravidão oficiosa: andara cabisbaixo, só agora descobria que os negros de outrora estavam aglomerados nas favelas, nos barracos, nas margens dos rios poluídos, debaixo de viadutos, sob as marquises e dentro de valas improvisadas – quando exterminados por aqueles que sempre continuavam vê-los como ameaça social. Possante, assustado, olhou para seu corpo e sentiu um arrepio de alma, era um negro! Um homem livre ilhado e mais uma vez murmurou:


–Tem base, sô! Fica ativo, sô!

Sinhá Aurora, nervosa, fez os seus reclamos passados.

– Até hoje tratei você como os meus antepassados trataram, nunca deixei faltar nada para você, aqui você tem casa, tem a cama, a roupa, eu não entendo! Ainda agora, tão velho, tão só, sem ter para onde ir!

Possante, com toda altivez de voz, respondeu no mesmo tom.

– Senhora nunca deu nada pra mim, fui eu que cuidei da Sinhá e dos seus filhos e dos seus netos e até dos seus sobrinhos; fui eu que cuidei, de sol a sol, das suas plantações e hoje vejo que meus filhos estão na cidade cuidando dos carros de seus filhos e os meus netos continuam sendo jardineiros dos seus netos e as minhas sobrinhas são domésticas de suas sobrinhas.


Sinhá Aurora, constrangida, deu as costas para Possante. Ela também despertava e descobria que já não possuía mais nenhum negro para mandar, mesmo assim não importava que fosse o último de seus negros para o caminho do morro e principiar batalhar outro futuro. E o futuro de um negro? Sinhá Aurora ainda acreditava que era numa favela, lá no morro sob a mira de um fuzil.

Tags: consciência histórica, linguagem regional, minas gerais
 Jeremias Brasileiro Jeremias Brasileiro
Crônicas e Ensaios das Gerais

Doutor em História Social pela Universidade federal de Uberlândia. É Comandante Geral da Festa da Congada da cidade de Uberlândia, no Triângulo Mineiro, desde o ano de 2005 e presidente da Irmandade do Reinado do Rosário de Rio Paranaíba, Alto Paranaíba, Minas Gerais, desde o ano de 2011. Desenvolve pesquisas sobre cultura afro-brasileira e sua diversidade nas Congadas de Minas Gerais, associando-as com o contexto educacional, em uma perspectiva epistemológica congadeira, de ancestralidade africana. Um intelectual afro-brasileiro reconhecido na obra de Eduardo de Oliveira: Quem é quem na negritude Brasileira (Ministério da Justiça, 1998), que lista biografias de 500 personalidades negras no Brasil; e na obra de Nei Lopes: Dicionário Literário afro-brasileiro (Rio de Janeiro: Editora Pallas, 2011). Detentor de um dos maiores acervos digitais sobre as Congadas de Minas Gerais, constituído desde a década de 1980, historiador com vasta experiência e produção cientifica sobre ritualidades, simbologias, coexistências culturais e religiosas em oposição ao conceito de sincretismo. Escritor, poeta, possui textos de dramaturgia, crônicas, literatura afro-brasileira.

Leia também: Sincretismo não! Coexistência cultural e religiosa, sim. Parte 1