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O misterioso caso da cidade sem buracos e o prefeito quebra-molas

Publicado em 15/05/2021 - 11:49 Por Jeremias Brasileiro
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Créditos da imagem: https://g1.globo.com. Foto: PMBV.

Em uma cidade qualquer por aí das minas gerais sem fronteiras, um fenômeno inexplicável aconteceu. Quando o dia amanheceu sorridente, uma cidade inteira em uníssono a comentar o inusitado acontecido que assustou toda a população. Algo assim espetacular, jamais imaginado por todos os habitantes, algo que provocou espanto, medo, revolta, e, alterou o cotidiano dos cidadãos.

 

Em todo lugar da cidade, não existia buracos, não existia entulhos, sem lixos, sem sujeiras. Foi um dia inteiro de comoções, de alegrias, de filmagens, fotografias, contudo os dias foram passando, e os buracos não surgiam. De manhã as lixeiras estavam limpas, os caminhões rodavam vazios, os garis nada faziam. O que parecia um paraíso começou incomodar a sociedade de forma quase geral.

 

Uma cadeia sucessiva de insatisfações se instalou rapidamente na cidade: mecânicos raivosos pela diminuição de serviços, sem pneus furados, sem rodas e suspensões danificadas, alinhamentos e balanceamentos de carros, tudo parado. Igualmente reclamavam: as empresas de recicláveis, as empresas responsáveis pelos contratos públicos de manutenção do asfalto que sempre todos os dias tapavam os buracos pelas ruas da cidade.

 

O fenômeno misterioso da cidade sem buracos trouxe à tona outra realidade: da importância dos buracos por diversos motivos. Por isso, o assunto tomou conta de toda a cidade, do gari ao empresário, do vereador ao prefeito. Viralizou-se nas redes sociais, foi pauta de todos os noticiários; o acontecimento da cidade limpa e sem buracos, mobilizou a imprensa nacional.

A turma da vereança se revoltou com fervor, os pastores fizeram orações pedindo a volta dos buracos. Um vereador exaltado bradava: “– Como assim? Não existir mais buracos na cidade! Isso é herança! Sem buracos os votos diminuem! Sem buracos a cidade não caminha! Tem de existir uma solução pra isso!”

Com essa provocação da assembleia legislativa municipal, reuniram-se, em um congresso de urgência, todos os segmentos afetados pela crise dos buracos. Discussões acirradas, ameaças veladas, sem buracos, sem recapeamento asfáltico, não era possível ocultar quilômetros de centímetros a menos, que no fim resultava no surgimento de mais buracos. Sem buracos, não existiria relações subterrâneas! Os buracos precisavam voltar, a cidade está em crise.

O congresso municipal atravessou a noite e ao clarear do dia uma sugestão bombástica: “– Sem os buracos não temos como viver! Vamos buracos fazer!”. O congresso municipal por unanimidade aplaudiu! O prefeito baixou decreto de urgência urgentíssima sem contestação: “– Autorizamos aos ofendidos, que façam quantos buracos for necessário”.

Decreto baixado, buracos feitos por toda a cidade com todas as ferramentas possíveis e maquinarias. Um mutirão legal a produzir buracos de qualquer tipo para satisfazer os segmentos afetados. Entulhos e sujeiras, de igual maneira, foram espalhados pelas Ruas, Avenidas e Praças.

Até um casal de idosos, reclamava pela ausência de buracos na rua que provocava um merejamento de água no asfalto, um merejamento que pelo ano inteiro o departamento de água arrumava: uma equipe quebrava o asfalto; outra equipe fazia o buraco; terceira equipe, arrumava o cano trincado; quarta equipe voltava e tapava o buraco; quinta equipe retornava para asfaltar o buraco.

E assim, o ano inteiro, a maratona continuava. Mas agora os idosos reclamavam por não poder reclamar, sem buracos, sem merejamentos, eles não podiam brigar. Reclamar era prazer, revezavam-se nas reclamações, era uma terapia diária que o fenômeno da cidade limpa e sem buracos não permitia mais que fosse realizada.

Não havia ninguém que conseguisse ficar acordado após meia noite, um sonho coletivo, anestesiante, tomava conta da cidade, por isso, quando despertavam, lá estavam cada uma das ruas novamente sem buracos, sem sujeiras.

Depois de dias, o prefeito pediu e a vereança concordou com um decreto de calamidade pública pela ausência de buracos na cidade. Sem licitação, contratou dezenas de empresas, centenas de caminhões, adquiriu milhões de metros cúbicos de concretagem e encheu a cidade de quebra-molas!

Ou seja, nada de lombada sinuosa, era bloco de concreto pelas ruas, quem não passasse em seu carro de primeira, arrebentava rodas, pneus, suspensões.

Foi então que os motoboys se revoltaram: com entregas rápidas pela cidade, quase tinham que empurrar as motos ao passar pelos quebra-molas de concreto, entretanto isso! É outra história...

Tags: Asfalto, buracos, quebra-molas, corrupção
 Jeremias Brasileiro Jeremias Brasileiro
Crônicas e Ensaios das Gerais

Doutor em História Social pela Universidade federal de Uberlândia. É Comandante Geral da Festa da Congada da cidade de Uberlândia, no Triângulo Mineiro, desde o ano de 2005 e presidente da Irmandade do Reinado do Rosário de Rio Paranaíba, Alto Paranaíba, Minas Gerais, desde o ano de 2011. Desenvolve pesquisas sobre cultura afro-brasileira e sua diversidade nas Congadas de Minas Gerais, associando-as com o contexto educacional, em uma perspectiva epistemológica congadeira, de ancestralidade africana. Um intelectual afro-brasileiro reconhecido na obra de Eduardo de Oliveira: Quem é quem na negritude Brasileira (Ministério da Justiça, 1998), que lista biografias de 500 personalidades negras no Brasil; e na obra de Nei Lopes: Dicionário Literário afro-brasileiro (Rio de Janeiro: Editora Pallas, 2011). Detentor de um dos maiores acervos digitais sobre as Congadas de Minas Gerais, constituído desde a década de 1980, historiador com vasta experiência e produção cientifica sobre ritualidades, simbologias, coexistências culturais e religiosas em oposição ao conceito de sincretismo. Escritor, poeta, possui textos de dramaturgia, crônicas, literatura afro-brasileira.

Leia também: Sincretismo não! Coexistência cultural e religiosa, sim. Parte 1