Quando uma conta do rosário cai, uma história tradicional da congada se vai
Publicado em 06/11/2021 - 14:39 Por Jeremias BrasileiroNestor Vital partiu recentemente (outubro de 2021), sua morte deixou mais uma vez a congada uberlandense órfã, pois, ele era um dos últimos capitães cantadores de improviso de uma geração antiga, com seus fundamentos, seus conceitos, seus modos de ver a tradição a partir de suas vivências e aprendizados que em muitos momentos chocavam-se com as gerações modernas.
Nestor Vital dizia que o dialeto usado nas demandas e nos pontos de moçambiques era o angola, dialeto banto, mas que outros congadeiros antigos cantavam em outros tipos de dialetos como o Ketu e o Gege, de Nigéria e Daomé, respectivamente. “Preto sabe língua, preto sabe lê, a língua de preto branco quer saber”. Essa oração cantante de Nestor Vital nos leva a pensar o quanto o processo de escravização foi determinante para a resistência da cultura afro-brasileira, especialmente as congadas em Minas Gerais.
Os negros que chegaram ao Brasil, acreditavam em toque de tambor somente como ritual de liberdade, eles não foram arrancados da África, sonhando com tempos bons. Primeiro apareceu a garganta de ferro com a sua boca cristã, arrasando os plantios de inhame, mandioca, milho e mais; com as pastagens cheias de gado que sustentavam as aldeias, os reinados, os impérios e todos os tipos de hierarquias étnicas, as micro-nações.
Nestor Vital dizia que o congado é "culto aos ancestrais" e na década de 1980 o seu moçambique usava uma indumentária discreta: ojá azul, camisa branca, fita azul na cintura, saiote azul-claro, calça branca e tênis branco. Para demonstrar sua energia, Nestor Vital chegou a protagonizar cenas rituais complexas: em certa festa, ele foi o primeiro a chegar e reivindicou o "direito de mastro" provocando um conflito com outros capitães de grupos. O mastro representa um marcador simbólico de resistência, lembrando os tempos em que os homens cultuavam imagens esculpidas em madeiras. Por isso, Nestor Vital falava das cantorias em "gegê", "nagô" e "kêto": nações africanas chegadas ao Brasil nos primórdios da escravidão.
Moçambiqueiro arredio, Nestor Vital evitava fazer apresentações esporádicas e recusava insistentes convites, demonstrando certa indignação com aqueles que consideravam o congado como um "folclore católico". Ele acreditava que ficar o tempo todo fazendo "graça" para gente que só se interessava pelo congo por causa de suas pesquisas, iria prejudicar o ritual, pois, comentava Nestor: "quanto mais a gente ficar fazendo essas graçinhas pra esse povo, mais eles vão dizer que tudo nosso é folclore e naõ vai respeitar a gente nunca".
Para essa antiga geração de congadeiros, os grupos modernos se infiltravam na congada sem possuir uma linhagem secular, sem dramaticidade na dança, na música e cantoria de improviso, e tudo isso, para Nestor Vital, acabava sendo um dos maiores problemas ocorridos na tradição, já que certos grupos não comungavam de uma territorialidade verdadeiramente enraizada nos fundamentos congadeiros.