Sincretismo não! Coexistência cultural e religiosa, sim. Parte 1
Publicado em 15/04/2022 - 08:16 Por Jeremias BrasileiroO conceito de sincretismo pressupõe o ocultamento de determinados elementos em detrimento de outros e não uma equivalência simétrica sem subjugação, como no caso específico da Congada em que a "relação sincrética" impõe a presença visual de determinados símbolos hierárquicos ocidentais, a sufocar dessa maneira, os de essência congadeira, num processo simbólico religioso de assimetria, desigualdades, de invisibilização do outro. Na possibilidade de equivalência simbólica e simétrica real, um rito, um préstito, poderia trazer lado a lado elementos da religiosidade afro-brasileira junto àqueles que são notadamente cristãos, como ocorre em uma Procissão do Sr. Morto, na cidade de Rio Paranaíba-MG, evidenciada ao final desse texto.
A cultura congadeira subsidiada pelas
cantigas, pelas rezas, coreografias, ritmos, cores, celebrações das mais
diversas ordens, contam e cantam coisas também antigas, de guerras, de lutas,
de batalhas, de fé. Desse modo, esse fazer cultural é um exemplo fundamental
para restabelecer a “comunicação numa sociedade onde as relações sociais
parecem todas marcadas por considerações de hierarquia, autoridade, etiquetas,
deferências e reverências” (BARRY, 2000, p.7). Essas práticas culturais com as
suas festas, suas danças, seus cantos e mais propriamente com o ressoar de seus
tambores, igualmente enunciam mensagens de natureza diversa, tanto de tristeza,
quanto de alegria, de rebelião ou de fé.
Mesmo sob um cenário de existência escravista, os africanos celebravam a vida como sabiam fazê-lo, e nesses momentos se libertavam dos brancos e de suas maneiras de ser. Essa “África aqui refeita e festejada, que não se submetia culturalmente, não era, para muitos, menos ameaçadora do que a que se rebelava socialmente” (REIS, 2001, p. 352). A gestualidade corporal impregnada de ressoar de tambores também perturbava os senhores e por isso, o Congo, o Congado, as Congadas eram, e, continuam sendo, as mais vivas representações dessas resistências seculares.
Entende-se aqui a terminologia Congo como aquela que suscita, revivifica, capaz de redimensionar no presente, uma memória de antepassados, uma memória cultural proveniente dos povos “bantos” oriundos de algumas regiões do antigo Reino do Congo, entre as quais situavam a província de Angola e outros reinos com seus reis e rainhas. Daí porque ao reviverem essa memória cultural, os escravizados instituem no Brasil não a concepção de reinos, mas de várias formas de “Reinados” celebrados através de embaixadas que na literatura será mais conhecida por meio de danças dramáticas ou Congadas.
Quanto a um dos conceitos de Congadas utilizado em larga medida pelos próprios praticantes da manifestação, é uma conceituação associada às rememorações de reinados africanos por meio de festejos, festas, festividades, onde estão incluídas as procissões, coroações, desfiles de apresentações de Grupos, Guardas, Bandas ou Ternos; novenas, novenários, missas campais, almoços coletivos e outras atividades ligadas ao contexto da festa e a expressão denominada de Congado, é compreendida como uma prática de organização sociocultural cotidiana dos grupos, uma manifestação cultural e social que acontece no decorrer do ano, independentemente da data em que se realiza as festejos congadeiros.
Desse modo, identifica-se igualmente em um mesmo objeto com nomenclaturas diferenciadas, modos distintos de representações. O congo como lugares de memórias alicerçadas em um passado distante, de antepassados, de ancestralidades; a congada, como lugar de cultura popular por meio das manifestações festivas, religiosas, culturais, uma tradição em permanente transformação, e, o Congado, enquanto lugar de experiências socioculturais cotidianas.
Quanto ao uso da categoria de coexistência cultural e religiosa, já trabalhada pelo autor em outras oportunidades (BRASILEIRO, 2012, 2016), refere-se ao fato de que os personagens envolvidos em determinada função ritualística, tenham algum tipo de conhecimento recíproco sobre os processos dessas ritualidades. Essa coexistência, pode ocorrer tanto de modo harmonioso quanto conflituoso. As questões de fusões em que uma cultura se imerge em outra, produzindo um terceiro elemento cultural, tem a ver com os conceitos de sincretismo, categorias de análises essas, que não dão conta do universo com o qual lidamos, ou seja, as Congadas de Minas Gerais.
O nosso entendimento em relação à Congada, está centrado em uma coexistência cultural religiosa em que possam coexistir situações toleráveis ou não, a depender dos atores, que em determinado momento histórico, estejam à frente das celebrações congadeiras. Isso envolve comportamentos distintos sob um mesmo cenário de ritualidades congadeiras inseridas no catolicismo popular.