Faça login na sua conta!

Ainda não tem uma conta? Cadastre-se agora mesmo!

Mega Colunistas

Colunistas

Uberlândia e o carnaval dos “sem lugar”

Publicado em 05/02/2022 - 12:26 Por Jeremias Brasileiro
destaque
Créditos da imagem: Arquivo Público Municipal

O carnaval e a sua relação com o poder público é emblemático, pois, sendo uma tradição mais que cinquentenária, ele é ao mesmo tempo uma manifestação “sem lugar” na cidade, apenas um festejo cultural itinerante, fazendo dessa festa, um carnaval dos “sem lugar”. E esse sem lugar tem seu início desde quando os negros invadem os desfiles carnavalescos até então realizados, só pela elite no centro da cidade, na Avenida Afonso Pena, nos anos de 1950, entretanto, esse “sem lugar” chega ao ano de 2017, em pleno século XXI.

 

A incômoda presença desses sujeitos inicialmente conhecidos como Tenentes Negros, faz com que paulatinamente, a elite abandone o carnaval de rua e refugie-se nos clubes e salões particulares, no intuito de manter os seus festejos distanciados dos negros que se apoderavam da Avenida Afonso Pena, processo esse historicamente reconhecido, poucas vezes relatados em estudos, porém, não com a ênfase que aqui é diretamente dada à temática.


Um depoimento de João Rodrigues, popularmente conhecido como Mestre Bolinho, é emblemático para evidenciar essa discriminação racial na década supracitada: “– Olha as galinhas barulhentas! Pensam que Afonso Pena é céu!” Um bando de “galinhas no céu”, forma jocosa e discriminatória de referir-se aos negros que adentravam à Avenida Afonso Pena, centro da cidade, com suas fantasias de carnaval, ou seja, um bando de “urubus alegremente barulhentos”.

 

Ao decorrer das décadas e com a conceito pejorativo de que esse carnaval de rua se transforma em uma festa de negros, o mesmo por conseguinte, vai sendo tratado de maneira secundária, enquanto proporciona algum retorno eleitoral a essa mesma elite, por meio de seus representantes e parlamentares. Só que esse tratamento se reestrutura, reelabora-se em suas relações de compadrio, que em nada altera as hierarquias sociais, e, desse modo, o carnaval de rua torna-se sinônimo eventual de apoiamento público de acordo com as circunstâncias políticas, sem, contudo, enraizar-se em uma localidade fixa.

 

O mesmo pressuposto poderia ser aplicado quase que integralmente ao Congado, não fosse a sua dinâmica diferenciada de resistência que abarca outras táticas de vivências, imersas na religiosidade, tendo como suporte discursivo, uma ancestralidade diferente dos festejos carnavalescos. De tudo isso, uma percepção de abandono a essa manifestação se cristaliza em todos os sentidos e com o agravante de ser partícipe desse racismo estrutural, todos os gestores públicos municipais que estiveram nessa cadeia sucessória desde o ano de 1953 até o ano de 2017.

 

Todos esses, sedimentaram essa cultura como aquilo que é do outro, que é do negro, que é daquele que não tem lugar na cidade, a institucionalizar assim, esse “sem lugar” que é pensado por uma elite que reatualiza constantemente os seus modos de ser racista, de tal forma que às vezes dá a impressão de que tudo acontece por uma destinação natural, em uma expectativa de autodesignação, de destruição por si só.

 

Dessa concepção originar-se-ia a possibilidade de que o carnaval de rua tenha um ciclo-fim, morte essa que não pode ser enunciada pelo poder público, mas possível de ser desejada que aconteça na interioridade das contradições e de sobrevivências dessa cultura cada vez mais refém de sua própria auto sustentabilidade, enquanto guardiã tradicional do carnaval de rua na cidade. Esse enredo, delineia o que de início era o propósito dessa problematização, ao enfatizar concretamente de que o carnaval de rua de Uberlândia é um carnaval dos “sem lugar”. Os negros tomam conta da Avenida Afonso Pena e a elite sai; os moradores cada vez mais revoltados com o barulho, reclamam e o carnaval surge na Avenida João Naves de Ávila; o trânsito pede passagem e o desfile de Momo encontra refúgio provisório na Avenida João Pessoa e depois Avenida Belo Horizonte.


Tão rápido quanto o progresso exige, o carnaval dos “sem lugar” titubeia, cambaleia e vai ao bel prazer do poder público, ora às vezes impulsionado por pressões sociais, habitar tantos lugares que o caracterizam como algo de um povo que não tem espaço na cidade, como uma cidade em que o carnaval por ser do povo, igualmente não necessita de lugar. Suficiente, entretanto, é demonstrar esse “sem lugar” na prática, ainda que a sequência das localidades possa não estar em ordem cronológica.


Expulso da Avenida Afonso Pena, vai para Avenida João Naves de Ávila, depois por uns anos, visita Avenida Joao pessoa, Avenida Belo Horizonte e logo após conhece a Avenida Anselmo Alves dos Santos e os seus alagamentos em decorrência de chuvas; retorna à Avenida Monsenhor Eduardo, com resistência de feirantes e moradores, aparece novamente na Avenida Anselmo Alves dos Santos e por fim, no ano de 2015, é transferido perifericamente para um local ao lado do Estádio e Parque do Sabiá, contra a vontade dos defensores do meio ambiente, por causa do stress que o barulho do carnaval, poderia causar aos animais situados bem próximo aos referidos festejos.

 

Ao referendar a presença do carnaval em condições adversas e distante do centro da cidade, sacramenta-se de vez essa noção de racismo institucional, independente de quem seja o administrador público, e, diante dessa conjuntura, é possível afirmar que a cultura racista está intrinsecamente alicerçada, essencialmente estruturada nas relações de poder.

 

Conclui-se a problematização desse “sem lugar” com a não realização do evento carnavalesco devido a ausência do poder público – Prefeitura Municipal – que justificando incapacidade financeira resolve não apoiar a realização do evento protagonizado pelas escolas de samba e blocos de enredo. Consequentemente, sem estrutura e com a sua inviabilização por parte do poder público, faz com que ocorra outro desfecho, outro lugar. Esse outro lugar, foi o local de exposições agropecuárias, de tal modo que de tantos sem lugares, o carnaval terminou encontrando refúgio, metaforicamente falando, em um curral onde são expostos os animais de raça dos grandes latifundiários da cidade.


O Antropólogo, pesquisador e professor Jorge de Carvalho já sinalizava há tempos para as sujeições que as culturas populares enfrentariam nessa relação que envolve abandono do poder público, o abraço do poder privado e o deslocamento, junto com o apagamento paulatino dos atores sociais populares, enquanto protagonistas das suas manifestações.


Dito isso, compreende-se que o racismo deixou à deriva esse “não lugar” do carnaval de rua, para que escolas e blocos de enredo, por meio de seus protagonismos, tivessem um enraizamento fixado; contribuiu de fato, para a sua desestruturação ao longo das décadas, chegando dessa forma ao ano de 2017, imerso em uma dependência política e material sem precedentes.


Essa prática de deixar à margem a manifestação popular com forte viés de negritude, até que um dia as coisas pareçam terminarem por si só, abrem igualmente os caminhos para uma nova configuração carnavalesca comercial, da qual os sujeitos donos desse poder simbólico, correm o risco de tornarem-se personagens figurantes, reféns dessa forma voraz de agir do capital econômico sobre a dependência material e logo do descarte dessa, quando já não cumpre mais o seu papel, que é o de proporcionar a geração de lucros.

Tags: Carnaval, cultura afro-brasileira, exclusão
 Jeremias Brasileiro Jeremias Brasileiro
Crônicas e Ensaios das Gerais

Doutor em História Social pela Universidade federal de Uberlândia. É Comandante Geral da Festa da Congada da cidade de Uberlândia, no Triângulo Mineiro, desde o ano de 2005 e presidente da Irmandade do Reinado do Rosário de Rio Paranaíba, Alto Paranaíba, Minas Gerais, desde o ano de 2011. Desenvolve pesquisas sobre cultura afro-brasileira e sua diversidade nas Congadas de Minas Gerais, associando-as com o contexto educacional, em uma perspectiva epistemológica congadeira, de ancestralidade africana. Um intelectual afro-brasileiro reconhecido na obra de Eduardo de Oliveira: Quem é quem na negritude Brasileira (Ministério da Justiça, 1998), que lista biografias de 500 personalidades negras no Brasil; e na obra de Nei Lopes: Dicionário Literário afro-brasileiro (Rio de Janeiro: Editora Pallas, 2011). Detentor de um dos maiores acervos digitais sobre as Congadas de Minas Gerais, constituído desde a década de 1980, historiador com vasta experiência e produção cientifica sobre ritualidades, simbologias, coexistências culturais e religiosas em oposição ao conceito de sincretismo. Escritor, poeta, possui textos de dramaturgia, crônicas, literatura afro-brasileira.

Leia também: Sincretismo não! Coexistência cultural e religiosa, sim. Parte 1