Uma casa simples pode ser um patrimônio cultural permeado de histórias
Publicado em 28/11/2021 - 08:27 Por Jeremias BrasileiroHavia em Rio Paranaíba, minha terra natal, uma casa que era do tempo da minha infância. Essa casa que se visualiza na abertura desse tópico, tinha seus encantamentos, fogão à lenha, feijoada, macarronada, tutu à vontade, uma variedade de biscoitos, bolachas, bolos, que inebriava a meninada. Também era um lugar de benzições, principalmente de crianças. A casa foi demolida, a história foi esquecida, mas quando se trabalha com um viés de pesquisa constante, vez em quando, essas lembranças veem à tona.
Trabalhar com a história do tempo presente por meio de arquivos vivos ou contemporâneos – já falecidos – é um processo metodológico interessante e ao mesmo tempo desafiador. É preciso um árduo tempo de maturação, de escolha dos personagens, das temporalidades envolvidas e da consciência histórica de alternâncias nas interpretações, até mesmo da recusa no tempo atual daquilo já oralizado e permitido como registro em passado recente.
Uma pesquisa de longa duração tem muito disso: registros em audiovisuais mais consistentes, não descartando as anotações, testemunhos, entrevistas e as constantes observações em campo bem como às vezes participação direta nos eventos. Trata-se nesse aspecto de uma pesquisa dialogal com viés literário e igualmente documental, todavia distante da ficção.
O retorno às fontes vivas e por vezes aos familiares de sujeitos históricos que morreram, nem sempre ocorre de maneira amistosa e a harmoniosidade anterior se transforma em uma indiferença no momento da revisitação. Discursos antes proferidos, testemunhos registrados, podem ser invalidados por motivações religiosas de famílias que optaram por seguir determinada vertente religiosa e negar todo o seu passado vivido ou dos pais e avós não mais vivos.
Ouvir de alguém que há uma década professava uma fé, a frase ríspida de que: “- isso não faz mais parte de mim e aquilo que minha mãe e avó diziam eram coisas demoníacas, foram salvas ainda em tempo, foram convertidas antes de morrer!” pode ser assustador para um pesquisador do tempo presente caso não esteja preparado para lidar com essas ocorrências não de todas incomuns. A fé é para nós um elemento de ancestralidade.
Nosso conceito de fé não se estabelece nessas cronivivências de memórias e saberes unicamente enquanto uma experiência religiosa cristã de conotação ocidental. É uma fé de múltiplos sentidos interconectados às vivências, aos modos de ver, de sentir e viver o mundo em suas dimensões permeadas de fronteiras tênues.
A fé que se deposita na capacidade de resistir no presente por meio de uma invocação cotidiana dos antepassados e dos espíritos ancestrais que sintetiza em parte esse pressuposto conceitual de fé adotado nesta obra. Essa fé é igualmente recorrente quando se canta, dança, e homenageia os mais próximos que se foram: pais, tios, avós, bisavós contemporâneas ou não de nós.
São diversos os modos de fé traduzidas quando se faz uso dos tambores vocais. As rezas cantadas através dos lamentos, as rezas oralizadas por meio das lembranças, dos cantos benzitórios, das conversas dialogadas que soam como expressões cantantes nas faces das guardiãs das memórias e dos saberes ancestrais.