O afeto que mora nos seus olhos
Publicado em 21/10/2021 - 12:38 Por Márcia CostaEscrevo hoje sobre as sensações que um certo tipo de fotografia nos desperta. A fotografia da memória, dos afetos. São imagens que surgem como promessa de perpetuar uma existência, são rastros ou indícios do real. A vida registrada nas fotografias familiares recupera fragmentos de um universo amoroso, imagens que nos fazem pertencer, lembrar quem somos e de onde viemos - são identidade. Quando olho para a fotografia da minha mãe, eu entendo bem o que isso significa.
Uma foto diz muito das nossas experiências pessoais e culturais, da relação com o objeto ou a pessoa fotografada. Para nos ajudar a entender melhor sobre esse processo, o grande semiólogo Roland Barthes criou conceitos que nos ensinam muito sobre o aspecto descritivo (cultural, histórico) e emotivo das imagens, aquilo que nos afeta.
Olhar uma fotografia é, antes de tudo, uma experiência estética, um aguçar dos sentidos. Levando em conta que nem todo mundo estuda leitura de imagens, é a sensação, o arrebatamento que uma imagem causa ou não em nós que é despertado no primeiro contato com a fotografia.
E aí não importa ser uma imagem captada profissionalmente, já que as fotografias vernaculares, como diz Barthes, são imagens da vida que gente comum produz, para além da fotografia profissional. Partamos então delas, das nossas imagens amorosas, porque elas registram o objeto do nosso afeto e dizem de nós, da nossa vida.
Para entender melhor sobre isso, Barthes criou os conceitos de punctum e studium, que ele descreve no livro “A câmara clara”, um clássico da teoria fotográfica. Os dois conceitos apontam uma dualidade presente no interesse por uma fotografia. Eles se referem aos aspectos objetivo (studium) e subjetivo (punctum) da imagem.
O studium revela o um interesse guiado pela nossa consciência,
e diz respeito às características ligadas ao contexto cultural e técnico da
imagem. Já o punctum tem caráter subjetivo, diz respeito aos valores e
sentimentos de quem olha a fotografia. São detalhes que tocam emocionalmente o
espectador e variam de pessoa para pessoa, é o que estimula na fotografia, o
que fere o apreciador.
O punctum é a própria subjetividade do leitor e
por isso é pessoal e intransferível, cada um enxerga o seu. E porque realmente
atinge, faz a fotografia viver no interior de quem a observa, explica Barthes.
Confere a quem observa a imagem uma voz, a oportunidade de colocar a sua
opinião, dizem as palavras do semiólogo.
Diante do porta-retrato que guarda o rosto ausente, percebemos que tentamos nos salvar do desaparecimento. Enfrentamos caminhos tortuosos percursos para manter a nós e outras pessoas visíveis, para deixar um traço de visibilidade quando a morte levar. A fotografia surgiu para reverberar a existência de alguém mesmo depois de sua morte.
Barthes me ensina que a fotografia da minha mãe, que faleceu há dez anos, é o lugar da batalha entre o perecível e o imortal. Olhando a foto dela leio ali os componentes históricos e culturais de uma imagem produzida há cerca de 55 anos, por volta dos anos 1960, quando ela teria aproximadamente 20 anos.
A imagem está um pouco marcada e desgastada pelo tempo, o que aponta que não foi bem conservada. Uma imagem feita possivelmente em estúdio ou por fotógrafo profissional, já que minha mãe não tinha câmeras fotográficas em casa. Época da fotografia em preto e branco, já que a fotografia colorida no Brasil atinge seu ápice no começo da década de 70, principalmente com o uso da popular câmera da Kodak. A pose e o estilo visual presentes na imagem da minha mãe remetem às atrizes do cinema, ícones da época.
No seu olhar vejo o punctum, o que mais me atinge, porque eu a conheci e ali enxergo grande parte da sua beleza. Olhos de jabuticabas, doces, reluzentes. O brilho e a intensidade dos olhos remetem ao oceano de amor que era a minha mãe. E você, como lê as suas imagens de afeto?
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